segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Hospitalidade: a pedagogia do outro



A hospitalidade se define sempre a favor do outro
. É um movimento na direção do outro, uma poesia da acolhida. Uma alta funcionária do governo do Peru, que fora antes assistente social em regiões de indígenas amazônicos, ao visitar uma comunidade da nação Achuar, foi recebida com esta canção de hospitalidade: “Pomba, que deixaste teu ninho e que vens de tão longe, não fiques triste. Nossa comunidade é uma grande árvore que abre seus ramos e te acolhe em seu ninho. Pomba fique conosco”.

A hospitalidade é definida na Bíblia como um dom (I Pe. 4. 9). Abraão teve uma experiência linda de hospitalidade (Gn. 18. 1-16). O escritor da epístola aos Hebreus chega a afirmar: “Não vos esqueçais da hospitalidade, pois por ela alguns, sem o saber, hospedaram anjos” (Hb. 13. 2). O apóstolo Paulo, escrevendo a Timóteo (I Tm. 3. 2), afirma: “É necessário, pois, que o bispo seja [...] hospitaleiro...” (grifo meu). A acolhida traz à luz a estrutura básica do ser humano. Existimos porque fomos acolhidos: a generosidade da mãe, o colo do pai, a companhia dos amigos, etc. Tudo isso são imagens da hospitalidade em nossa vida diária.

Abraão e as dimensões da hospitalidade (Gn. 18.1-16)

A questão do olhar

O texto de Gênesis 18 mostra-nos com profundidade, as dimensões e a beleza da hospitalidade. Logo no versículo 2, há uma proposital repetição do verbo ver! O versículo diz: “Levantou Abraão os olhos, olhou e viu três homens em pé na sua frente. Vendo-os, correu da porta da tenda ao seu encontro, e prostrou-se em terra”. Ora, se o texto afirma claramente que os três homens estavam “em pé na sua frente”, dá para presumir que Abraão os teria visto, não? Mas o texto faz questão de frisar que ele, com certeza, viu, olhou, atentou para eles.

O que isso tem de tão importante? Isso nos assegura a base da hospitalidade: a questão do olhar! O olhar sempre representa um conhecimento da presença do outro, e, por parte do estranho, do que se aproxima pedindo abrigo, uma súplica silenciosa para um possível encontro. Negar-se a olhar é pretender tornar não-existente o que existe e grita. Abraão olhou, viu, aceitou o fato de que o outro carecia de seu auxílio, de sua acolhida!

A questão da sensibilidade

Sem a sensibilidade não há movimento de ida ao encontro do outro. Não há socorro, não há celebração. Há um termo grego que traz as mais belas dimensões da sensibilidade: patós (sentimento). Quando a sensibilidade está aflorada em nós, o patós subjuga o lógos (razão, lógica). O sentimento domina a lógica. Abraão não raciocina no sentido de que aqueles homens fossem estranhos, e, portanto representassem uma ameaça, mas parte do patós, com seu ato de “prostrar-se em terra”. Somente os sensíveis podem acolher. O mundo embrutecido não permite que a veia da sensibilidade nos guie para além das garras da lógica.

A questão da acolhida

A acolhida não é feita apenas da verbalização do encontro, mas de gestos que se concretizam na história:

Convite para o descanso: no versículo 4, Abraão diz: “...repousai debaixo dessa árvore”. A promoção do descanso é gesto de humanidade que enxerga no outro a necessidade de recobrar o ânimo. O gesto de oferecer a sombra de uma árvore é o símbolo do enxergar da necessidade de uma brisa, de uma refrigeração do calor da vida.

Oferecer água fresca: essa água aponta para o gesto de oferecer vida. Água é vida! No versículo 4, Abraão diz: “traga-se agora um pouco de água, e lavai os pés”. Lavar os pés é o supremo grau de acolhida e serviço. É um indicativo de que a convivência generosa e aberta é livre da poeira do passado.

Convite para comer: a hospitalidade e a convivência se concretizam na comensalidade. No versículo 5, Abraão diz: “Trazei um bocado de pão”. Nos versículos 6, 7 e 8, a refeição se amplia. No âmbito da hospitalidade não se trata apenas de uma nutrição, mas é a consumação de uma relação e de uma convivência. É compartilhar do que você come todos os dias, ou seja, é um convite à sua vida diária!

Servir de forma abundante: uma refeição especial, não um serviço burocrático de um cotidiano cansativo. Abraão oferece o melhor: no versículo 7, o texto faz questão de frisar que o bezerro era “tenro e bom”. É a máxima descentralização de si mesmo e a máxima concentração no outro.

A base maior da hospitalidade é o reconhecimento do outro. O Novo Testamento afirma que o próprio Deus por sua encarnação se fez outro em Jesus. É no outro, portanto, que encontramos a máxima densidade da presença de Deus. Isso é hospitalidade.

“Se vivermos justapostos acabaremos opostos, por isso, precisamos sempre ser compostos, entrando em alguma composição para conviver, absolutamente juntos” (Martin Buber, filósofo judeu-alemão, em “Eu-tu, por uma democracia sócio-cósmica”).

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

BLOCOS E RETIROS


Uma parábola sobre o papel da igreja durante o Carnaval

Epêneto era o presbítero responsável pela igreja em Roma, desde que Priscila e Áquila tiveram que deixar a cidade em busca de novos campos missionários. Epêneto foi um dos primeiros a se converterem através do trabalho realizado por Paulo nessa cidade.

Aquela igreja era muito ativa, sempre aberta a acolher as pessoas. Quando havia algum cataclismo, fome ou guerra, os cristãos se mobilizavam para socorrer as vítimas. Por causa de seu envolvimento com a dor humana, ganhou a simpatia de todos, inclusive de funcionários do palácio de César.

Num belo dia, ouviu-se o clangor do clarim. Todos se reuniram para ouvir o que o mensageiro do império tinha para anunciar. Em duas semanas, o exército romano estaria chegando de uma campanha militar bem-sucedida. O próprio César o receberia com uma Parada Triunfal, que seria seguida de um feriado prolongado dedicado aos deuses Marte e Saturno, também conhecidos como Apolo e Baco, divindades da guerra e do vinho, respectivamente. Seria uma grande festa, regada a bebidas alcoólicas e todo tipo de luxúria. A população sairia às ruas para assistir ao desfile das tropas romanas, dando-lhes boas-vindas, e assistiriam à execução de milhares de prisioneiros. Ninguém trabalharia naqueles dias.

Epêneto ficou preocupado com a notícia. Qual deveria ser o papel da igreja durante essa festa pagã? Ainda inexperiente como líder, reuniu alguns dos mais antigos membros da igreja para discutir o que fazer.

Um deles, chamado Narciso, pediu a palavra e deu sua sugestão:

- Amados no Senhor, por que não aproveitamos o ensejo para promover um desfile paralelo, onde demonstraremos ao mundo a nossa força, revelando a todos nossa lealdade ao Rei dos reis, Jesus Cristo? Podemos até copiar algumas de suas canções, adaptando-as à nossa fé. Em vez de exibirmos prisioneiros, exibiremos testemunhos daqueles que foram salvos. Vamos montar nosso próprio bloco, quer dizer, nossa própria parada triunfal. Pode ser uma grande oportunidade evangelística.

Epêneto, depois de algum tempo pensativo, respondeu: Caro Narciso, a idéia parece muito boa. Porém, quem ouviria nossa voz durante os momentos de folia? Nosso modesto bloco se perderia no meio de toda aquela devassidão. Ademais, a maioria das pessoas estará embriagada, incapaz de entender nossa mensagem. Também não estamos preocupados em dar uma demonstração de força. Jesus disse que nosso papel no mundo seria semelhante à de uma pitada de fermento, que de maneira discreta, sem chamar a atenção para si, vai levedando aos poucos toda a massa. Por isso, acho que sua idéia não é pertinente. Quem sabe em gerações futuras, haja quem a aproveite?

Levantou-se
então Andrônico, que gozava de muito prestígio por ser parente de Paulo, e sugeriu:

- Amados, durante o Desfile Triunfal e as Saturnais, a situação espiritual da cidade ficará insuportável. Divindades pagãs serão invocadas, orgias serão promovidas em lugares públicos à luz do dia. Não convém que estejamos aqui durante essa festa da carne. A melhor coisa a fazer é nos retirarmos, buscarmos um refúgio fora da cidade, e aproveitamos esse tempo para nos congratularmos, sem nos expormos desnecessariamente às tentações da carne.

Todos acenaram com a cabeça, demonstrando terem gostado da idéia. Já que seria mesmo feriado, ninguém precisaria trabalhar. Um retiro parecia a melhor sugestão.

O velho
presbítero ficou um tempo em silêncio, meditando. Todos estavam atônitos esperando sua palavra, quando mansamente respondeu:

- Irmãos, não nos esqueçamos de que somos o sal da terra e a luz do mundo. Se no momento de maior trevas nos retirarmos, o que será desta cidade? Por que a entregaríamos ao controle das hostes espirituais das trevas? Definitivamente, nosso lugar é aqui. Não Precisamos deexposição, como sugeriu nosso irmão Narciso, nem de fazer oposição à festa, retirando-nos da cidade, como sugeriu Andrônico. O que precisamos é estar à disposição para acolher aos necessitados, às vítimas da violência, aos desassistidos, aos marginalizados.
A propósito, não temos estado sempre disponíveis para atender as pessoas durante as tragédias que tem abatido o império? E o que seriam tais desfiles, senão tragédias morais e espirituais? Saiamos às ruas, mesmo sem participar da folia, e estendamo-los as mãos, em vez de apontar-lhes o dedo, oferecendo compaixão em vez de acusação, amor em vez de apatia. Que as casas que usamos para nos reunir estejam de portas abertas para receber quem quer que seja, e assim, revelaremos ao mundo Aquele a quem amamos e servimos. Afinal, o reino de Deus se manifesta sem alarde, sem confetes, sem barulho, mas perturbadoramente discreto.
Depois dessas sábias palavras, ninguém mais se atreveu a dar qualquer outra sugestão.